AS MANHÃS DE CLARA
Clara acorda com o canto do sabiá que, há pouco mais de um mês, fez morada na quaresmeira em frente à sua janela. Alguns poucos raios de sol conseguem penetrar pela fresta da veneziana e alcançam a mesa de cabeceira onde há um abajur, um porta-retratos mostrando três rostos sorridentes e um livro.
Em outros tempos, ali estaria um aparelho celular pronto para ser empunhado pelas mãos ávidas de uma Clara ainda sonolenta logo nos primeiros minutos em que ela abrisse os olhos pela manhã.
Mas não mais.
A mulher se levanta e caminha lentamente até a sala na companhia de sua pequena gatinha branca que, assim que entra no cômodo, avista o sofá, dá um salto e se aninha sobre uma almofada grande e felpuda. Clara abre cortinas e janelas e respira o ar fresco do dia. Sobre a mesa da sala estão arrumados seus materiais de estudo: um caderno com cara de antigo revestido por uma capa de tecido florido, algumas canetas e um livro sobre história da arte. Na cozinha, Clara encontra o café já pronto dentro da garrafa térmica acompanhado por um bilhetinho carinhoso de seu marido, que já havia saído para fazer sua corrida matinal.
Em outros tempos, depois de despejar o café na xícara, ela iria se acomodar na sua poltrona preferida com o celular a postos e singraria, sem rumo, por um feed cheio de fotos e vídeos aleatórios até que sua filha finalmente despertasse e a tirasse, à força, de frente das telas com sua vozinha clamando pela mãe.
Mas não mais.
Com determinação e gosto, Clara senta-se à mesa, abre o livro de arte na página marcada e começa a fazer anotações entusiasmadas nas linhas do caderno vintage. Consegue estudar por mais de meia hora antes de sua pequena acordar.
O café da manhã é preparado a quatro mãos: as de Clara ajudadas pelas miúdas mãozinhas de Aurora. Ela pede por música, e a mãe, já habituada a evitar o celular, encaminha-se diretamente à antiga vitrola, ajeita a agulha e deixa as notas fantasiosas de Tchaikovsky inundarem o lar.
O marido de Clara chega, toma um banho e se junta às duas para a primeira refeição do dia. A mesa está farta: frutas, ovos, suco, pães, geleia e queijos. Agradecem.
Em conjunto, tiram a mesa e se preparam para os afazeres do dia. Beijo, abraço, despedida.
Em outros tempos, seria hora de Clara colocar seus fones, ligar um podcast e ser embalada pelas incessantes vozes e palavras enquanto lavasse a louça sem mal notar, varresse o chão sem mal notar, arrumasse as camas sem mal notar.
Mas não mais.
Acompanhada pela delicada ajuda de sua pequena filha, Clara vai, aos poucos, cuidando da casa. A menina se encanta com a espuma do detergente, a folha que voa longe como se fugisse da vassoura, o lençol macio que vai ficando perfeitamente alisado debaixo das suas mãozinhas. Mãe e filha passam a manhã juntas. Saem a pé para comprar legumes e frutas. Pelo caminho observam coisas que as fazem sorrir: a nuvem que se parece com um coelho, a casa do joão-de-barro, as minúsculas flores que nascem nas brechas do concreto. O telefone toca. Clara se alegra em ver que é sua mãe. Atende e as duas conversam sobre o dia, os planos, a vida.
Em outros tempos, assim que terminasse a ligação, Clara aproveitaria que já estava com o celular em mãos para descansar e tirar um tempo só para ela vendo vídeos engraçados que durassem apenas alguns poucos instantes para, então, serem substituídos por outros e outros e outros. Ela só seria tirada desse estado de torpor quando olhasse as horas e percebesse que, sim, estava novamente atrasada para preparar o almoço e seria melhor pedir qualquer delivery.
Mas não mais.
Ela se encaminha até a escrivaninha, pega sua agenda e checa todos os seus compromissos e tarefas da tarde: trabalhar num vídeo, verificar e-mails, responder mensagens, assistir àquela aula pelo YouTube. Sim. O celular com sua facilidade e praticidade, a Internet com seu oceano de conhecimento e inspiração, as redes sociais com suas preciosas amizades...tudo isso tem significante importância e valor para a vida de Clara. E um tempo é separado para essa valiosa parte de sua rotina. Mas é um tempo que não invade espaços. Um tempo que não rouba momentos. Um tempo que não tira de Clara a conexão dos olhos nos olhos, a calma do foco pleno e a bênção da contemplação dos pequenos detalhes que tornam o seu dia a dia tão rico.
Clara deposita o celular no lugar que escolheu para ele: não em seu bolso ou preso firmemente em suas mãos, mas sim no aparador, ao lado das chaves e de outros objetos de uso específico e pontual.
E, deste lugar, o aparelho só será tirado quando seu uso tiver um propósito bom e digno.
A mulher sorri.
E vai cuidar do seu momento presente.
Uau, viajei lendo esse texto, imaginando cada cena e que história. A nossa história né,onde a gente fica mais no celular do que vivendo. Esse texto resumiu algumas atitudes que venho tomando a cada dia,de ficar menos no celular sabe, apreciar mais. 🤍 Muito obrigada por compartilhar sempre coisas tão maravilhosas com a gente. Me faz relembrar a escritora que habita em mim ainda,que passava horas escrevendo suas histórias mas que com a modernidade foi deixando isso de lado. Obrigada por reavivar isso.
Lendo este texto,me pergunto onde foi que nos perdemos como humanidade.A descrição parece ser tão distante que parece que não haviam celulares na época em que foi escrito,mas sei que não foi isso que aconteceu.Aconteceu que deixamos de viver as belezas da vida para "olhar" as mesmas belezas avidamente como sedentos que não sabem mais como tirar a água do poço e precisam ser servidos...triste.Estou nesta luta!
Sinto-me prisioneira.Mas estou lutando e você está me ajudando!🌹
Perfeito e cirúrgico. 💖
Que texto, querida Deia! Gratidão. 🙏🏻🤍✨
Amei esse texto! Muito verdadeiro e necessario!